Relato dos Casos Semanais

Identificação: JGF, 73 anos, paciente do HUAP.
HDA: apresentava dor epigástrica e sintomas dispépticos inespecíficos associados de perda ponderal.
HPP: Paciente epilético (Faz uso de Valpakine® e Carbamazepina) e apresentava estenose valvar aórtica e mitral, com espessamento parietal da cavidade ventricular esquerda com disfunção diastólica mostrada pelo ecocardiograma.

Exames:

Hemograma, leucograma e bioquímica não mostraram alterações relevantes;
TC: Mostrou bronquiectasias nos lobos inferiores de ambos os pulmões com bandas parenquimatosas nas mesmas regiões, linfonodomegalias mediastinais;
USG do abdômen: Mostrou imagens sugestivas de colelitíase, e elevação do assoalho da bexiga devido a possível hipertrofia prostática.









Endoscopia Digestiva Alta: Mostrou hipertrofia do pregueado mucoso do corpo e do fundo gástricos, enantema generalizado da mucosa, lesão com mucosa irregular, friável, com erosões sugestivas de adenocarcinoma gástrico classe Borrman I - Foram recolhidas biópsias;











Exame Histopatológico: Biópsia de lesão mostrando adenocarcinoma pouco diferenciado com células em anel de sinete, ulcerado. Biópsia de mucosa superficial mostrando gastrite crônica, metaplasia difusa, atividade inflamatória moderada. Teste para H.Pylori pelo método Giemsa mostrou-se negativo.
Conduta: Após avaliação clínica decidiu-se que a conduta seria cirúrgica - Gastrectomia total com  linfadenectomia D2 e reconstrução de trânsito através da técnica Roux-en-''Y''. A colecistectomia também fora realizada, mas não foi possível a gravação do procedimento.

A Cirurgia:

Gastrectomia Total : É uma cirurgia indicada para malignidade do estômago, ou tratamento de úlceras pépticas não tratáveis clinicamente associadas a tumores de células não beta das ilhotas de Langerhans do pâncreas, quando o tumor ou suas metástases não respondem a tratamento quimioterápico. Pode ser acompanhada de extirpações adicionais como a do baço, corpo e cauda do pâncreas, cólon transverso e outros. Não é indicada na existência de metástases à distância.

Linfadenectomia D2: Os linfonodos do estômago são divididos em agrupamentos. O grupo I (N1) é composto pelas cadeias linfáticas de 1-6 (1- Paracárdicos direitos, 2- paracárdicos esquerdos, 3- pequena curvatura, 4- grande curvatura, 5-supra pilóricos e 6- infra pilóricos.), grupo II (N2) é composto principalmente pelas cadeias linfáticas que acompanham os vasos da região celíaca, sendo numeradas de 7-12 (7-Artéria gástrica esquerda, 8- artéria hepática comum, 9- tronco celíaco, 10- hilo esplênico, 11-artéria esplência e 12- pedículo hepático.). Já o grupo III (N3) é numerado de 13-16 (13- Cabeça do pâncreas, 14- artéria mesentérica superior, 15- artéria cólica média e 16- paraaórticos.). A ressecção D1 consiste da remoção apenas das cadeias linfáticas do N1, D2 da remoção das cadeias linfáticas N1 e N2 e D3 consiste da remoção de todos os grupamentos N1,N2 e N3. Sabe-se que em relação à sobrevida não há vantagens sobre D2 e D3, mas sabe-se que quanto à morbimortalidade D3 apresenta maiores taxas devido ao maior tempo cirúrgico principalmente.



Roux-en-''Y'': Consiste da reconstrução do fluxo gastrointestinal através da união de uma alça de jejuno com o esôfago e anastomose de um coto composto parte por duodeno em sua totalidade e porção proximal do jejuno.
Pré Operatório: Disposição de 4-6 bolsas de sangue, manter equilíbrio hemodinâmico, antibioticoprofilaxia com ciprofloxacino e Flagyl®, lavagem colônica no caso de acometimento do cólon, sondagem nasogástrica e sonda vesical, além de outras monitorações e controle das condições clínicas do paciente.
Técnica: Após a limpeza e assepsia da pele abdominal e colocação do campo cirúrgico, a incisão deve correr da região epigástrica alta, um pouco abaixo do apêndice xifóide, até o umbigo. Em seguida deve-se palpar e explorar as vísceras da cavidade abdominal afim de verificar a presença de critérios que excluiríam a possibilidade de realização da gastrectomia total, avaliar a mobilidade do estômago em relação às estruturas que compõem o leito gástrico (Conjunto de estruturas sobre as quais o estômago se encontra recostado - Pilar esquerdo do diafragma, baço, vasos esplênicos, corpo e cauda do pâncreas, pólo superior do rim esquerdo e glândula suprarrenal esquerda.) - A probabilidade de infiltrações é mínima no caso da inexistência de aderências. Caso não existam tais critérios, pode-se ampliar a incisão inferiormente ao umbigo, caso seja necessário.
Todo o cólon transverso deve ser liberado e refletido inferiormente, incluindo-se as flexuras hepática e esplênica. Tal processo é realizado a partir da incisão do plano avascular encontrado no folheto anterior do mesocólon transverso. Caso existam comunicações vasculares entre as veias cólica média e gastroomental direita, estas devem ser ligadas afim de se evitar sangramentos posteriores. Logo, o estômago mostra-se móvel e pode ser rebatido superiormente.
Ao refletir-se o estômago superiormente observa-se o pâncreas e os vasos esplênicos. Nesta etapa deve-se ressecar os linfonodos supra e infra e suprapilóricos, além daqueles que acompanham os vasos esplênicos sobre o corpo do pâncreas exposto. Em seguida são ligados os vasos gástricos e gastroomentais direitos, tendo sempre em vista a manutenção do fluxo pelas artérias gastroduodenal e hepática comum.







Descrição esquemática das etapas supra citadas.








Ligadura dos Vasos Direitos


















A próxima etapa é então a secção do duodeno, separando-o da porção aboral do estômago. Para se facilitar o procedimento pode-se realizar a manobra de Kocher, que consiste da incisão, na face antipancreática do duodeno, da fáscia de Treitz (Remanescente do folheto anterior do mesoduodeno, encontrado antes da rotação do trato gastrointestinal. Tal processo embriofisiológico promove a formação de fáscias de coalescência, tornando o duodeno um órgão parcialmente retroperitoneal.). A separação é realizada através da técnica manual ou através da utilização de um Stappler linear (A escolha na cirurgia em destaque.) e em seguida, a área oral do duodeno suturada sofre invaginação por sutura contínua seja de disposição horizontal ou vertical - No caso, horizontal. Vale ressaltar a impossibilidade de anastomosar-se o coto duodenal oral com o esôfago, devido à possibilidade da ocorrência de esofagite que seria causada pelo refluxo do conteúdo duodenal ao lúmen do esôfago.

                                     Utilização do Stappler Linear



A próxima etapa então consiste da secção do pequeno omento, que deve ser realizada o mais próximo possível da borda anterior do fígado. Neste momento deve-se  lembrar dos três conjuntos de estruturas importantes que correm entre os folhetos do ligamento gastrohepático, de inferior para superior, a tríade portal, o feixe neurovascular gastrohepático (Em 25% dos casos, a artéria gastrohepática presente neste feixe substitui a artéria hepática esquerda sendo a única responsável pelo suprimento sanguíneo do lobo esquerdo do fígado ou de um de seus segmentos - Devemos preservá-la se de calibre considerável.) e um dos ramos da artéria frênica inferior.
Quanto à tríade portal, deve-se ressecar sua cadeia de linfonodos através da dissecção das estruturas adjacentes à face esquerda da artéria hepática esquerda, descendo sob a mesma face da veia portal (A partir desta etapa, pode-se acessar a artéria hepática comum e tronco celíaco, amplicando-se a dissecção à região celíaca.). Em relação à artéria frênica inferior, pode ser isolada através de dissecção romba. Secciona-se então o ligamento triangular esquerdo do fígado e rebate-se o lobo hepático esquerdo livre superiormente com o auxílio do Hasson e de uma compressa. Nesta etapa deve-se ampliar superiormete a incisão, cogitando inclusive a remoção do apêndice xifóide para visualização adequada do esôfago abdominal e da região subfrênica esquerda. Na cirurgia foi utilizada tração amarrada à mesa para eliminar-se a necessidade de mais um assistente para manusear o instrumento de tração nos rebordos costais.





Em seguida, torna-se possível a reflexão total do estômago superiormente, expondo a maioria das estruturas de seu leito. Durante o processo, é possível se observar a formação do foramen bursae minor, que divide o vestíbulo da bolsa omental desta última propriamente dita. Tal forame é formado pelas pregas gastropancreáticas esquerda e direita que são formadas do seguinte modo: Quando as artérias gástrica esquerda e hepática comum se originam do tronco celíaco e se direcionam aos seus órgãos alvo, levantam uma prega de peritônio parietal posterior, no caso da artéria gástrica esquerda, a prega gastropancreática esquerda, e no caso da artéria hepática comum, a prega gastropancreática direita. Desta forma pode-se encontrar ambos os vasos. No caso da artéria hepática comum pode-se encontrá-la ainda através da dissecção pré citada da tríade portal hepática.  
Deve-se ressecar as cadeias linfáticas de ambas as artérias. no caso da artéria hepática comum da origem da artéria gastoduodenal até a origem da artéria esplênica no tronco celíaco.
Em seguida, liga-se a artéria gástrica esquerda.
                                                         
                      Ampliando-se a incisão e tração do rebordo costal


                                             Estômago Rebatido
                                                                   

                             Vídeo da Ligadura da Artéria Esquerda



Assim que possível a exposição do hilo esplênico, liga-se os vasos gastroomentais esquerdos, gástricos curtos e gástricos posteriores (A artéria gástrica posterior consiste da primeira artéria gástrica curta que atinge o fundo gástrico por sua face posterior através do ligamento gastrofrênico, ao contrário das outras artérias gástricas curtas e da artéria gastroomental esquerda, que atingem o fundo gástrico através do ligamento gastrolienal.), o que deve ser realizado bem próximo ao hilo esplênico. O esôfago abdominal então é dissecado através de dissecção digital, liberando-o de suas reflexões peritoneais e de seus pilares. Os troncos vagais são seccionados afim de promover-se maior mobilidade ao esôfago.
Nesta etapa, deve-se ancorar o esôfago aos pilares de seu hiato através da utilização de duas suturas laterais de tração, que evitam a retração do esôfago ao mediastino assim que seccionado (Tais suturas não cortadas imediatamente para que se possa manusear e tracionar o esôfago abdominal de forma mais satisfatória.), além de uma superior e outra inferior que evitam a rotação do esôfago (Estas últimas podem ser de maior número).
Com o auxílio de um clamp vascular de Satinsky secciona-se o esôfago.

                                              Suturas de Tração    
                                                                 

                                             Secção do Esôfago





O próximo passo, é mobilizar uma alça de jejuno suficientemente longa para alcançar a porção aboral livre do esôfago. Secciona-se o jejuno a cerca de 20 centímetros após o ângulo de Treitz com o auxílio de um clamp intestinal, realizando-se secção e sutura concomitantes e em seguida invagina-se a extremidade na qual os fios permaneceram conectados (Pode-se utilizar stappler linear.). Leva-se a porção não suturada do jejuno (Aquela na qual o clamp intestinal está conectado.) até o esôfago livre, a partir da abertura de um orifício no mesocólon transverso à esquerda da veia cólica média.
Em seguida, prepara-se o stappler circular. Sua ogiva deve ser posicionada no lúmen do esôfago enquanto o restante cilíndrico do instrumento é posicionado dentro do lúmen da alça jejunal que se deseja anastomosar com o esôfago. Após o disparo observa-se uma anastomose látero terminal jejunoesofágica. Deve-se ancorar a alça de jejuno anastomosada ao diafragma para se reduzir a tensão promovida pela anastomose.
O coto do jejuno por onde coloca-se o stappler linear é então fechado, suturado e invaginado.
Agora, o que deve-se fazer é desembocar o segmento fechado do trato gastrointestinal restante, composto pelo duodeno e pela porção suprassecção do jejuno, afim de escoar-se os fluidos despejados no duodeno no lúmen do segmento anastomosado gastrojejunal. Tal procedimento é realizado de forma semelhante ao procedimento relativo ao caso semanal passado. Pode ser realizada a anastomose látero terminal ou látero lateral.

                                     Peça Direcionada à Patologia

                                                             
                                       Início da Secção do Jejuno                                                                            

                                                       
                                         Vídeo Secção do Jejuno


                                          Invaginação do Jejuno
                         
























                                       
                                                     
                                                                                                 Posicionamento da Ogiva                                                                                                                    



                              Vídeo da utilização do Stappler Circular



Agradecimentos: Dra. Reila Saraiva, Prof. Dr. Rodrigo Felipe e Prof. Dr. Aniello.








Paciente, feminina, 83 anos, admitida no HUAP, apresentava sub-oclusão intestinal sem sintomatologia de urgência evoluiu nesta última semana para quadro de obstrução intestinal - Distenção abdominal acentuada, vômitos fecalóides, plenitude pós prandial (Hiporexia), além de suspeita de coleção intra abdominal por perfuração intestinal e fístula no espaço de Morrinson por imagem sugestiva na TC de abdome e leucocitose. Paciente, cardiopata, possuía uma discinesia da face frênica e acinesia da parede septal do coração (Realizado ecocardiograma), cursando com IC.
EDA: Realizada endoscopia digestiva alta mostrando imagem sugestiva de hérnia de hiato;
RX: Mostrou distensão e grande cálculo biliar;
TC: Mostrou massa na flexura hepática (Círculo verde), imagem duvidosa no espaço de Morrinson (Círculo vermelho) e distensão do TGI;



Colonoscopia: Mostrou múltiplos divertículos de sigmóide (Fechando a ''Tríade de Saint'' - Colelitíase, diverticulose e hérnia hiatal associados.) e massa vegetante na flexura hepática do cólon.
     

Conduta: Enterocolostomia ''By Pass'' de íleo terminal com a porção do cólon transverso pós tumoral. O ''by pass'' pode ser utilizado para se desviar o trânsito intestinal de uma área obstruída por tumor ou por aderências extensas.
Ao se explorar a cavidade peritoneal da paciente, observou-se grande distensão das alças, inclusive das alças  do intestino delgado, o que mostrou incompetência ileocecal, não havia perfuração ou presença de coleção. Para se facilitar os procedimentos foi realizada uma ''punção'' intestinal com gelco nº14, com posterior sutura da área puncionada. 











Posto a situação, averiguou-se a anatomia do tumor da flexura hepática do cólon. O cirurgião realizou a manobra de Kocher e verificou acometimento duodenal (O tumor já invadira a parede anti pancreática do duodeno.)
Decidiu-se então que a conduta seria o ''By pass'' de íleo terminal com a porção pós tumoral do cólon pelos seguintes fatos:
-Acometimento duodenal: Cirurgia de ressecção tumoral implicaria em possível perfuração duodenal, fístula e outras complicações;
-Paciente cardiopata: Não recomendada a cirurgia radical, no caso, para tumor de flexura hepática, colectomia direita ou colectomia direita estendida.
Obs.: O ''by pass'' látero-lateral é o ideal nestes casos, já que os diâmetros do íleo terminal e do cólon transverso são um tanto discrepantes, o que implica em possibilidades altas da formação de fístulas e deiscência da sutura.

A técnica:

1- Sutura-se as duas bordas anti mesentéricas do íleo terminal e do cólon transverso dando preferência à passagem do fio através da tênia livre do cólon (Pode parece estranho à primeira vista suturar-se duas alças fechadas, mas em seguida o procedimento fica mais claro.). A região suturada constitui a borda posterior (Se inverte a sutura.) da ostomia;









2- Faz-se duas incisões paralelas à sutura de forma a termos, incisão - sutura - incisão | : |. Observe que a sucção sobre as incisões é constante, para se evitar a contaminação da cavidade intraperitoneal por fezes;


3- Temos então a partir daí dois círculos abertos, cada um com metade de sua circunferência já suturados previamente (Passo 1). A partir daí sutura-se as bordas livres dos dois círculos de modo a juntar-se os dois, dando continuidade às luzes intestinais.

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4- Em seguida, deve-se realizar a invaginação da mucosa colônica suturada através de sutura paralela, envolvendo todos os planos da parede intestinal


5- Por fim, faz-se o lavado da cavidade peritoneal com soro fisiológico aquecido, aspira-se e segue-se para o fechamento da cavidade peritoneal e da parede abdominal, que devem ser realizados da forma convencional ou de preferência do cirurgião.

O pós operatório deve-se seguir com antibioticoprofilaxia com Flagyl ® e Ciprofloxacino ou Ceftriaxone, sondagem nasogástrica, verificação diária de fluidos e eletrólitos. Encorajar a deambulação precoce do paciente. Outros componetes usuais do pós operatório também devem ser avaliados. 

Técnica com Stappler: 


Paciente em pós operatório, liberada pela cirurgia geral e encaminhada ao serviço de oncologia do Hospital Universitário Antônio Pedro para avaliação de um plano radio/quimioterápico.
Agradecimentos: Prof. Dr. Ítalo Accetta e Dra. Reila Saraiva.